sábado, 19 de dezembro de 2009

Milton Santos é o CARA !!!!

Esse documentário é tri, sugiro que assistam toda a sequência. A leitura social do mundo globalizado feita por Milton Santos é muito boa, mostra que se tem muito a fazer, mas também existe esperança!!!

http://www.youtube.com/watch?v=58Exmp1_IWM
Branqueamento, Compromisso, Negritude na Região Meridional do Rio Grande do Sul (1889-1930)

Introdução

O presente trabalho foi elaborado como requisito parcial para a conclusão do curso de Licenciatura em História. Ao longo da graduação, as disciplinas teóricas e práticas procuraram instrumentalizar o aluno, subsidiando-o com suportes e referenciais adequados ao processo de pesquisa.
Nesta monografia, certamente, refleti muito sobre aquilo que aprendi e vivenciei em minha trajetória acadêmica e pessoal, da qual esboçarei rapidamente algumas linhas, pois a própria definição do tema de pesquisa está atrelada como decorrência natural deste processo.
Desde minha infância, algo que sempre me fascinou, foram às longas conversas que tive com dona Dilma, minha avó, sobre sua vida, sua infância, seus pais, avós, amizades entre outras tantas coisas que faziam daquelas conversas a parte mais importante do dia para mim. Nascida em 1926, bisneta de escravos, contava coisas pela qual passou por conta de sua cor de pele, que a faziam por vezes encher os olhos de lágrimas.
Com o passar do tempo tive uma rápida passagem no grupo de Capoeira Nação, onde além de aprender a dar alguns golpes conheci muitas histórias, lendas, que despertaram interesse em relação aos assuntos da história do negro. Posteriormente, tive contato com militantes do movimento negro de Rio Grande, que me fizeram refletir sobre aspectos inerentes as “relações raciais” no Brasil.
Um outro contato importante que tive, foram os que ao longo da minha vida mantive com pessoas ligadas aos cultos afro, que proporcionaram muitas informações sobre o passado do negro no Brasil. Fora isso, dezenas de filmes norte-americanos que mostravam as “relações raciais” naquele país, as novelas brasileiras que por vezes abordavam este tema, muitas músicas que versavam sobre o assunto, contribuíram para cativar em mim uma “paixão” por estas questões.
Ao ingressar na universidade, ganhei um presente de um amigo do movimento negro. Era o livro Negras Raízes, que foi fruto de doze anos de pesquisa e que conta uma história que soma ficção e realidade narrada por Alex Haley - autor - segundo o que sua avó contava a respeito de um antepassado africano que saíra para cortar um tronco na floresta perto de sua aldeia, a fim de fazer um tambor, quando foi subitamente agarrado por quatro homens, acorrentado e levado como escravo para a América. Kunta Kinte era o nome desse antepassado, que fez questão de contar à sua filha como era a sua vida na África, único meio que encontrou de não perder sua identidade na terra dos homens brancos, os toubobs como os chamava. E a história foi transmitida de geração em geração até chegar em Alex Haley, que decidiu reconstruir a história do seu antepassado africano e das gerações de negros americanos que o sucederam.
Essa leitura influenciou na escolha do tema da monografia, visto a forma como ela foi elaborada, a partir de relatos familiares. As conversas informais que tive com militantes do movimento negro, capoeiristas, religiosos e principalmente, com minha avó, formavam um conjunto de relatos que gostaria de aproveitar para a confecção desta pesquisa. No entanto, dentro de minha disponibilidade de tempo não seria possível executar tal tarefa, mas mesmo assim, prossegui no intuito de trabalhar algo semelhante.
No que tange minha trajetória acadêmica, as próprias disciplinas obrigatórias por vezes abordavam esta temática, mas foi na disciplina optativa de História da África e Antropologia que obtive contato com leituras que foram aos poucos amadurecendo algumas concepções que nortearam esta monografia.
No Seminário Interfaces Raciais realizado em 2008 na Universidade Federal do Rio Grande, tive a oportunidade de assistir uma palestra referente à pesquisa histórica que havia sido feita por integrantes da Universidade Federal de Pelotas, junto as comunidades quilombolas da região meridional do Rio Grande do Sul, que teve nos relatos de seus moradores a principal fonte de estudos. Ao final, a palestrante mencionou a pesquisa elaborada por Agostinho Mario Dalla Vecchia, sob o título de Vozes do silêncio - Depoimentos de descendentes de escravos do Meridião Gaúcho, que foi a base para a confecção de sua dissertação de mestrado, defendida em 1992 e publicada em 1994, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul sob orientação de Mário Maestri, denominada Os Filhos da Escravidão: Memórias de Descendentes de Escravos da Região Meridional do Rio Grande do Sul. Posteriormente, no ano de 1997 na mesma universidade e sob a orientação de René Gertz, os depoimentos foram utilizados novamente na Tese de Doutorado de Vecchia intitulada As noites e os dias: elementos para uma economia política da forma de produção semi-servil filhos de criação.
Foram 32 depoimentos de descendentes de escravos de 16 cidades rio-grandenses, que serviram como dados empíricos da pesquisa. Vecchia, na dissertação, organizou as informações encontradas de acordo com suas respectivas funções, criou tópicos para caracterizar os tipos de castigos impostos aos escravos, de alimentação e vestuário, entre outros tantos aspectos que se mantiveram em grande parte no âmbito descritivo. Não se quer aqui depreciar o cunho descritivo do trabalho de Vecchia, até pelo fato da descrição não deixar de ser uma análise, o intuito foi salientar que sua proposta diferenciava-se da desta monografia, pois ele descreveu elementos mencionados pelos descendentes de escravos sobre o período de escravidão. Já na Tese de Doutorado, Vecchia abordou a situação dos filhos-de-criação no pós-Abolição, mesmo período em pauta nesta pesquisa, naturalmente, o autor não aborda o destino dos que não inseriram-se socialmente por essa via.
A sociedade do Rio Grande do Sul após a Abolição da Escravatura em 1888 reservou pouco espaço para os libertos, pois, como em todo o Brasil, através de uma forte discriminação e do preconceito racial, o negro viu-se cada vez mais excluído socialmente. Algumas destas situações ainda interferem na atualidade e foi mais significativa ainda nas primeiras décadas posteriores a Abolição. Esta monografia tem por objetivo analisar as implicações sociais do ideal de branqueamento juntamente as ideologias de compromisso e negritude, no contexto social e político da República Velha (1889-1930), na região meridional do Rio Grande do Sul, através do estudo de alguns depoimentos de descendentes de escravos, no intuído de compreender de que forma esses e seus primeiros descendentes vivenciaram aquele contexto.
Para tal utilizei as Vozes do Silêncio de forma mais analítica do que descritiva, visto a monografia abordar questões referentes a ideias de branqueamento, negritude e compromisso. Então, já que os entrevistados identificam-se como negros e descendentes de escravos, que viveram tanto no meio rural quanto no meio urbano da região meridional, e que a maioria dos depoimentos rememoram com nitidez pai e mãe, avô e avó, bem como traçam com facilidade suas genealogias até o cativeiro, é possível se obter determinadas ideias comuns sobre o período da escravidão e também informações sobre o pós-Abolição, ou seja, as memórias de infância e juventude que os entrevistados transmitem nos diálogos, são capazes de apresentarem dados sobre as formas de ajustamento do negro a sociedade naquele período.
O estudo clássico de Jacques Le Goff, História e Memória, apresenta a reflexão de muitos aspectos presentes na construção e na teorização das relações da memória com a história. Através do estudo histórico da memória, Le Goff demonstra diversas facetas da memória através dos tempos, considerando sempre sua importância enquanto representação da realidade social da qual estava inserida. Sendo assim, cabe nesta pesquisa destacar o seguinte:
O estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em transbordamento.

As Vozes do silêncio, em conjunto, refletem à memória social dos descendentes de escravos da região meridional. Através da análise das diversas memórias individuais, ou seja, das diversas vozes, pode-se obter os fundamentos que responderão à problemática desta monografia. Quanto ao retraimento e o transbordamento é preciso levar em conta que:

A atualização das vozes do passado no presente presenteiam o futuro com a memória. O ato de lembrar está inserido nas múltiplas possibilidades de registro do passado, a partir do qual as identidades são construídas e representadas de forma dinâmica, relacionando-se a inserção social e histórica de cada depoente nos processos culturais, comportamentais e hábitos coletivos.

A memória contida nas Vozes do silêncio é importante para essa pesquisa, na medida em que traduz a forma de inserção social e histórica dos negros com o fim do regime escravista, fornecendo assim elementos que servem de subsídios para a compreensão da realidade. Essa pesquisa visa atualizar as vozes do silêncio no presente, para quem sabe “presentear” o futuro com uma pesquisa histórica que de voz a memória, no intuito de contribuir na construção da justiça social.
No entanto, cabe salientar que a pesquisa histórica deve considerar também elementos que por vezes não se encontram presentes na memória dos entrevistados, ou seja, os esquecimentos, os vazios, as criações, o contexto histórico e a realidade de cada um dos depoentes, são fatores de suma importância para melhor compreensão do objeto de pesquisa. Portanto, o estudo da memória social dos descendentes de escravos da região meridional do Rio Grande do Sul, para se constituir enquanto uma atualização das vozes do silêncio, deve considerar os elementos contidos na memória, bem como as situações que influenciaram na sua construção.
Com essas considerações, optei por dividir a monografia em três capítulos. No primeiro capítulo foi abordado o debate à cerca da questão racial no imaginário social brasileiro que antecedeu, transpassou e sucedeu o período da República Velha, que entre tantas razões, resultou no entendimento, por parte de Fernando Henrique Cardoso, de que a forma de ajustamento do negro à sociedade de classes no fim da escravidão do Rio Grande do Sul, recebeu influências do ideal de branqueamento e das ideologias de compromisso e negritude.
No segundo capítulo foi feito um maior aprofundamento no sentido interpretativo, ou seja, se buscou ali uma delimitação mais precisa do significado dos termos centrais desta monografia (branqueamento, compromisso, negritude, ideologia e ideal).
O capítulo seguinte procurou identificar de que forma os ideais de branqueamento e negritude e a ideologia de compromisso, estavam presentes nas Vozes do Silêncio, bem como analisou as implicações sociais desses fatores no contexto social e político da República Velha (1889-1930) na região meridional do Rio Grande do Sul, para que, a partir dai, se pudesse compreender de que forma os ex-escravos e seus primeiros descendentes vivenciaram aquele contexto.

CAPÍTULO I

Da questão racial no imaginário social ao ideal de branqueamento e às ideologias de compromisso e negritude

O ideal de branqueamento e as duas ideologias, compromisso e negritude, têm na questão da democracia racial sua gênese. O questionamento a que me refiro, diz respeito ao debate sobre a presença ou não de uma interação democrática entre as diversas “raças” que compunham o país, que antecedeu, transpassou e sucedeu o período da República Velha no Rio Grande do Sul, dentro de um contexto nacional, onde as ideias a cerca de democracia racial interagiam.
Portanto, a análise dos debates sobre a presença no imaginário social de uma ideia de democracia racial, pode ser apontada como a gênese do ideal e das duas concepções ideológicas que norteiam a construção desta monografia. Foi a partir de tal debate que Cardoso enquadrou os negros do pós-Abolição, dentro de dois tipos básicos de ajustamento à nova ordem de classes, fato esse que contrariava a ideia de democracia racial presente no período da República Velha. Então, compreender sua gênese é também compreender a conjuntura onde serão analisadas às implicações de ambas formas de ajustamento.
Ao pesquisar sobre A invenção do Estado Gaúcho, Pesavento afirma que “Toda a construção imaginária de uma sociedade traz, pois, no seu bojo, uma vontade e uma ação de construir um poder simbólico, que responde a interesses de grupos sociais precisos” , e no caso da implementação da ideologia de democracia racial no Brasil, cabe o questionamento de quais seriam estes grupos beneficiados e o que correspondeu ao poder simbólico que a tal democracia foi capaz de proporcionar?
Identificando os grupos beneficiados com a construção deste poder simbólico , oriundo da ideia de democracia racial implantada no imaginário social, é possível identificar o porquê da ideia da presença de racismo no Brasil ter sido de certa forma diluída, e, em contrapartida, a concepção de democracia racial ratificada. Essa pergunta consta como uma das implicações das ideologias de compromisso e negritude do contexto social e político da República Velha, que naturalmente será elucidada no transcorrer dessa pesquisa.
Cabe aqui salientar que “O imaginário é sempre representação, ou seja, é a tradução, em imagens e discursos, daquilo a que se chama de real.” Sendo assim, para compreendermos como construiu-se um imaginário social de democracia racial, se faz necessário identificarmos quais discursos e quais imagens embasaram este tipo de pensamento.
Clóvis Moura afirma que “é incontestavelmente em Nina Rodrigues que podemos situar o inicio da primeira tentativa sistemática de se compreender e interpretar o problema do negro do Brasil” . Analisando o trecho de Os africanos do Brasil (1890 e 1905) escrito por Nina Rodrigues , é possível estar diante de um estudo que coloca o problema do negro brasileiro enquanto um problema social, isto é, como uma questão de suma importância para a compreensão da formação racial da população brasileira.

Só porque não estamos, como nos Estados Unidos, na contingência de discutir diante de alguns milhões de Negros, as soluções do nosso problema étnico; porque não nos são aplicáveis os termos em que ali se debate a fusão biológica ou simplesmente social dos Brancos e Negros, o êxodo para a África, ou para a América Central, ou Meridional, e até mesmo a extinção dos afro-americanos, ficamos firmemente convencidos de que o problema do Negro nos liberta das suas preocupações. Mas, como nos Estados Unidos, nós recebemos largamente a imigração negra e esses negros foram incorporados à nossa população. Nunca tivemos, como nos Estados Unidos, um excedente respeitável de população branca e os Estados Unidos não têm, como nós, uma grande parte do país em plena região tropical. Acaso a simples miscigenação em que se misturam as partes mais ou menos equivalentes, Brancos e Negros – nos terá libertado da obrigação de estudar a influência do homem Negro no Brasil?

Diante desse questionamento podemos verificar através da comparação das relações raciais entre Brasil e Estados Unidos, a existência de uma espécie de consenso social que aponta na direção de uma democracia racial, ou seja, a afirmação de que “ficamos firmemente convencidos de que o problema do Negro nos liberta das suas preocupações” remete a um posicionamento de paraíso racial que já no século XIX era apresentada como discurso e imagem do Brasil, tanto internamente, quanto no exterior. Em pesquisa sobre a democracia racial Guimarães dissertou sobre o dito paraíso racial.

A idéia de que o Brasil era uma sociedade sem “linha de cor”, ou seja, uma sociedade sem barreiras legais que impedissem a ascensão social de pessoas de cor a cargos oficiais ou a posições de riqueza ou prestígio, era já uma idéia bastante difundida no mundo, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, bem antes do nascimento da sociologia. Tal idéia, no Brasil moderno, deu lugar à construção mítica de uma sociedade sem preconceitos e discriminações raciais. Mais ainda: a escravidão mesma, cuja sobrevivência manchava a consciência de liberais como Nabuco, era tida pelos abolicionistas americanos, europeus e brasileiros, como mais humana e suportável, no Brasil, justamente pela ausência dessa linha de cor.

A idéia de paraíso racial é uma espécie de antecedente do que mais tarde iria se denominar democracia racial. Essa perspectiva que via a escravidão brasileira como mais humana e suportável parece um tanto contraditória em si mesma, pois quais seriam os argumentos utilizados pelos abolicionistas senão aquele de que todos eram igualmente humanos? O fato é que existia uma ideia, ou forjava-se no imaginário social, um conceito de que as relações raciais no Brasil remetiam aquela concepção de paraíso racial.
Nina Rodrigues “é considerado como o principal intelectual racista brasileiro de finais do século XIX” e diante deste contexto é que Moura aponta Nina Rodrigues como um precursor, ou seja, teria seguidores que compartilhariam de suas idéias, obviamente com algumas contradições ou novidades, mas mantendo o viés racista.
Ora, se Nina Rodrigues e seus seguidores apresentavam ideias de cunho racista, como entendê-las como bases para se compreender um imaginário social de democracia racial?
O racismo de Nina Rodrigues se contrapunha a um suposto paraíso racial, onde todas as raças teoricamente tinham vez. Seu discurso apresenta-se como uma alternativa a um país no qual o imaginário social estava envolto na concepção de paraíso racial. Os argumentos deste discurso procuravam acabar com o tal paraíso, na medida em que buscava delimitar a raça branca a supremacia social.
Quanto aos seguidores de Nina Rodrigues, tem-se a afirmação de que “Seus discípulos é que procuraram dirimir algumas concepções equivocadas do mestre maranhense.” entre eles podemos mencionar que “o mais considerado discípulo de Nina Rodrigues foi, incontestavelmente, Arthur Ramos” que em 1934 publicou O Negro Brasileiro, fruto de suas pesquisas junto aos candomblés da Bahia, às macumbas do Rio de Janeiro e aos catimbós de alguns estados do nordeste. Esse estudo já apresenta alguma influência da escola do culturalismo, que naquela década já vinha sendo utilizado como forma de análise social.
A entrada das teorias culturalistas a partir da década de 1930 é marcada pela contestação as teorias racistas da escola de Nina Rodrigues, bem como as concepções de determinismo racial presentes também na obra de Oliveira Vianna o qual:

(...) era o ideólogo do racismo, quando ele já começava a ser questionado nos países capitalistas centrais e quando já se encaminhava para publicação o livro Casa Grande e Senzala (1933) de Gilberto Freire.

A década de trinta configurou-se como um período de transição entre duas formas predominantes de interpretação do Brasil, isto é, a entrada do culturalismo trouxe uma nova óptica interpretativa e metodológica para a construção dos discursos a cerca das questões sociais do país. Essa nova óptica encontrou no culturalismo um esforço de compreensão da diversidade humana caracterizada, fundamentalmente, por duas rupturas:

(...) uma com o determinismo geográfico e outra com o determinismo biológico. Na medida em que Franz Boas, o responsável por sua formulação, recusa as determinações do meio físico e as determinações raciais como responsáveis pela diversidade dos modos de vida humanos, é na cultura e no particularismo histórico que ele vai buscar as fontes dessa diversidade. O culturalismo é, assim, a vertente do pensamento antropológico que confere à cultura o primado da explicação ou da responsabilidade por essa diversidade.


Essa diversidade é derivada de uma vertente antropológica e sociológica que:
tendia a pensar a cultura como elemento central para a compreensão das relações étnicas em uma sociedade “pluriétnica”. Tendo sua origem comumente associada à obra máxima de Gilberto Freyre: Casa Grande e Senzala (1933)

O clássico livro de Gilberto Freire faz um estudo culturalista aprofundado da formação da sociedade brasileira. Remonta a relação senhor-escravo dentro do engenho, ressaltando aspectos como benevolência e solidariedade, fortalecendo assim a concepção da existência de uma democracia racial brasileira, pensamento esse que encontrou abrigo no imaginário social.
Para sustentar sua tese, Freire afirma que brancos e negros eram duas metades confraternizadas que se enriqueciam mutuamente de valores e experiências diversas. Um bom exemplo deste fato consta nesta descrição:

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando a mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho de pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira senção completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.

Nesse trecho torna-se evidente a perspectiva de um Brasil mestiço, onde negros e brancos interagem “sadiamente”, o que sugere a uma noção de harmonia racial no país. No entanto, a submissão do negro dentro daquele universo descrito por Freyre deu margem a duras criticas.

Este posicionamento de Freyre marca toda sua obra. Sua posição, por isto, é de procurar arredondar os ângulos agudos da escravidão sugerindo que, por empatia, as duas classes fundamentais – senhores e escravos – se completavam harmonicamente, numa divisão de funções que levaria o escravismo brasileiro a ser diferente dos outros, por mais benigno, teoria que os fatos desmentem facilmente. Tudo isto é dito de tal forma que ficamos com a impressão de que não houve contradições estruturais durante o regime escravista, manifestando-se apenas como exceções. Por isto, não têm representatividade na análise do conjunto.

É importante ressaltar que alguns autores como Araújo posicionam-se da seguinte forma: “Ainda tenho, contudo, alguma dificuldade em concordar que a visão que Gilberto possuía da nossa sociedade colonial envolvesse, de fato, a afirmação de um paraíso tropical” . Vianna, por sua vez, apresenta uma interpretação semelhante sobre Freyre: “em nenhum dos capítulos de Casa-Grande & Senzala, incluindo as notas volumosas desses capítulos, está impressa a expressão `democracia racial`”.
Nota-se então que esses autores afirmam que Freyre não utilizou do conceito de raça, mas sim de uma abordagem sócio-cultural. No entanto, como no caso do conceito de paraíso racial, a ideia de democracia racial está implícita no discurso. Guimarães faz uma importante ressalva quanto ao termo democracia racial:

Gilberto Freyre (1933, 1936) não pode ser responsabilizado integralmente, nem pelas idéias nem pelo seu rótulo; ainda que fosse o inspirador da ‘democracia racial’ evitou, no mais das vezes, nomeá-la assim, tendo-a conservado, ademais, com um significado bastante peculiar.

A expressão utilizada por Freyre para se referir anteriormente a democracia racial era a de democracia étnica. Em Conferência na Faculdade de Medicina da Bahia em 1944, Freyre diz o seguinte:

Encontram-se aqui [na Bahia] esses resultados num clima em que nenhuma região do Brasil é mais doce, de democracia étnica, inseparável da democracia social. E sem democracia social, sem democracia étnica, sem democracia econômica, sem democracia sócio-psicológica – a dos tipos que se combinam livremente em expressões novas, admitidas, favorecidas e estimadas pela organização social e da criatura – que pode ser senão um artifício a simples democracia política? [grifo meu]

Na mesma pesquisa Guimarães ainda afirma que: “Quanto a ‘democracia racial’, Freyre não usa tal expressão senão em 1962, quando no auge da sua polêmica defesa do colonialismo português na África,(...)” isso serve para reforçar o fato de que, provavelmente, esta ideia se fazia presente em seus discursos anteriores.
Para se compreender a conjuntura onde serão analisadas às implicações das ideologias de negritude e compromisso, é necessário verificar-se como o debate à cerca da questão da democracia racial desenrolou-se também ao nível regional.
Em artigo sobre a recepção da obra de Gilberto Freyre no Rio Grande do Sul, Nedel apresenta alguns aspectos relevantes para essa monografia. O ponto que gostaria de salientar é o da sua influência na produção historiográfica rio-grandense.

O presente artigo pretende explorar o sentido estratégico desse alinhamento tardiamente declarado com as opções analíticas do autor de Casa Grande e Senzala. Embora as apropriações variassem de autor para autor, e não obstante terem sido altamente controversas, gerando enfrentamentos e desafetos entre os sócios do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul — estando em jogo nos embates as atuações políticas pregressas, bem como as respectivas especialidades e posições ocupadas nas escalas de prestígio e redes de reconhecimento local — é possível encontrar na lógica cruzada pela qual esses autores articulam sua identidade profissional às propriedades de origem do território um eixo de unificação de interesses, para além de discordâncias pontuais.

Nedel demonstra a existência de um enfrentamento e de um alinhamento aos discursos e a metodologia culturalista de Freyre pelos intelectuais rio-grandenses. Nessa mesma pesquisa a autora lembra que Gilberto fez uma visita ao Rio Grande do Sul, e, entre outros, teve a companhia de Dante Laytano , que admitiu alguns anos após em entrevista toda a influência que o pensamento de Freyre exerceu sobre a produção historiográfica rio-grandense.

Toda. Todos nós sofremos a influência dele. [...] Ele foi um dos primeiros a estudar a história brasileira sob o ponto de vista social. A sociologia brasileira nasceu com Gilberto Freyre. Foi muito bonito, porque ele mostrou que devia-se interpretar a história, e não só revelar datas. [Seus ensinamentos foram] Primeiro: voltarmos pros assuntos brasileiros, foi o primeiro passo. Segundo: os assuntos locais. E terceiro: só estudar a história da terra da gente. Se tem uma história da França, é da França e acabou-se. E nós, do Rio Grande? Quem é que vai estudar?

Toda essa influência certamente contou com o alinhamento na forma de se tratar o problema racial por parte da intelectualidade rio-grandense. Segundo uma outra pesquisa sobre a construção da democracia racial brasileira, que apresentava o nordeste de Gilberto Freyre e o Rio Grande do Sul de Dante Laytano como elementos constitutivos de uma identidade nacional, ressaltou-se que:

(...) ao realizar uma análise historiográfica é preciso considerar, segundo Chartier (1988 e 1991), que um texto não tem sentido intrínseco, ele é uma construção de sentido – uma representação, vinculado de maneira mútua a uma prática social, e, é apropriado pela sociedade de diferentes formas – sendo re-significado, e ao mesmo tempo, construindo significados na sociedade. Assim, o objetivo ao analisar um texto é reconhecer a gama de “prácticas y representaciones que estructuran el mundo social donde ellas se inscriben”. (CHARTIER, 1991, XII). Assim, é preciso compreender o contexto em que Freyre e Laytano buscam enfatizar aspectos culturais e demonstrar uma harmonia racial do país.

Essa harmonia racial, assim como a ideia de paraíso racial, pode ser relacionada a democracia racial de Freyre. O motivo desta relação consta no fato de que ambas transmitiram ao imaginário social um sentimento de que no Brasil não havia, ou eram bem poucos, os problemas oriundos da interação entre “raças”. Freyre e Laytano ao ratificarem a democracia racial em seus discursos “traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse” dentro de um contexto em que as teorias racistas, presentes por exemplo na Escola de Nina Rodrigues, se caracterizava como uma espécie de pensamento hegemônico.
Sobre Laytano, Moacyr Flores afirmou que ele “destacou-se como pioneiro na pesquisa sobre a sobrevivência de costumes africanos, numa época em que os intelectuais afirmavam que não havia influência do negro na cultura sul-rio-grandense, entre eles o crítico literário e historiador Moysés Vellinho” e, como Freyre, teve em suas pesquisas o pressuposto de que o negro teve um papel muito importante na formação da sociedade e da História do Rio Grande do Sul, contrariando assim a história que privilegiava os grandes vultos e fatos históricos, que tanto repercutia na historiografia rio-grandense anteriormente a entrada do culturalismo no estado.
Estes intelectuais influenciados pelas ideias positivistas, muito em voga na República Velha, procuraram legitimar através de estudos científicos as noções de determinismo biológico e geográfico que justificavam uma espécie de hierarquia social, baseada por exemplo, em aspectos como o de raça. A intelectualidade a que me refiro fazia parte do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS), portanto os guardiões da história oficial, como Schwarcz referia-se ao analisar tais associações, que estavam atreladas ao aparelho estatal, o que no caso do Estado do Rio Grande do Sul, significa dizer que estavam atreladas as políticas centralizadoras de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros .
Sendo assim, o discurso buscava legitimar a supremacia da raça branca em detrimento das demais existentes no Brasil como algo natural. O voto censitário, a exclusão da mulher, do analfabeto, do índio e do negro no pleito eleitoral, são exemplos contraditórios as ideias democráticas atuais, mas que naquele período eram naturalizadas pela população. Não quero dizer assim que tal realidade era aceita por todos, tampouco que não houve contestações, apenas demonstrar que tipo de democracia prevalecia. Esse aspecto da democracia política pode ser comparado à dita democracia racial, ou seja, através do embasamento científico era naturalizada uma harmonia racial, onde cada “raça” tinha um lugar dentro de uma hierarquia social, isto é, assim como as mulheres, os analfabetos e os pobres, negros e índios deviam harmonicamente ocupar seus respectivos lugares, certamente dentro de uma linha hierárquica que legava as posições mais afastadas possíveis das esferas de poder.
A contestação à ideia de democracia racial teve nos resultados parciais de um programa de investigações realizado por Cardoso, entre os anos de 1955 e 1960, sobre o negro na sociedade escravocata do Rio Grande do Sul, uma fonte muito importante de considerações sobre tais assuntos. O autor combate em sua pesquisa o mito da democracia racial defendido por Freyre e seus seguidores, bem como de várias pesquisas referentes a tal questão. Ele faz uma importante constatação ao analisar uma ampla bibliografia sobre o assunto:

A maior parte dos autores que cuidaram do problema do escravo no sul não hesitou em apoiar-se em Saint-Hilaire para responder: ‘não há, creio, em todo o Brasil, um lugar onde os escravos sejam mais felizes que nesta capitania. Os senhores trabalham tanto quanto os escravos, mantêm-se próximos deles e tratam-nos com menos desprezo. O escravo come à vontade, não é mal vestido, não anda a pé e sua principal ocupação consiste em galopar pelos campos, cousa mais sadia que fatigante. Enfim, eles fazem sentir aos animais que os cercam uma superioridade consoladora de sua condição baixa, elevando-se aos seus próprios olhos’. A este testemunho, os comentadores acrescentam, às vezes, o julgamento de Dreys: ‘nas estâncias, pouco tem que fazer o negro, excepto na ocasião rara dos rodeios’.

A partir daí Cardoso questiona a idéia de existência de relações doces e benevolentes entre senhores e escravos, denunciando os horrores da escravidão no Brasil, mas obviamente, com ênfase no Rio Grande do Sul. Os autores , ou comentadores a que ele refere-se, firmaram o que Cardoso chama de mito da democracia gaúcha no imaginário social rio-grandense, que implicava, dentre outros elementos, na ideia de democracia racial.
Sua interpretação sobre a escravidão rio-grandense deu-se ao observar que as condições extremamente duras de vida no cativeiro tinham retirado dos escravos às habilidades necessárias para serem bem sucedidos na vida em liberdade, visto que condições desfavoráveis teriam desprovido os mesmos da capacidade de pensar o mundo a partir de categorias e significados sociais, que não aqueles instituídos pelos próprios senhores, ocorrendo assim, uma coisificação social dos negros sob a escravidão. A violência exercida pelo sistema escravista chegava a fazer com que os negros concebessem a si mesmos como não-homens, como criaturas inferiores, como coisas, daí a denominação teoria do escravo-coisa.
Ao abordar sobre os rumos posteriores a abolição na sociedade escravocata rio-grandense na conclusão de sua tese, Cardoso distinguiu dois tipos básicos de ajustamento dos negros a nova ordem de classes, de maneira a ratificar seu posicionamento contrário a qualquer idéia de harmonia ou democracia racial pós-abolição. O primeiro tipo básico de ajustamento foi definido como a absorção do “ideal de branqueamento” e pelo estímulo a “ideologia de compromissos”, caracterizada como algo que “(...) legitimava o preconceito e anuía às diferenciações sociais que os brancos quiseram impor aos negros, por serem negros.” . A segunda forma de ajustamento teria sido a tentativa de uma reação crítica contra a espoliação social imposta aos negros pelos brancos, dando vez a “ideologia de negritude”.

CAPITULO II

Dos termos centrais: ideologias & ideal, branqueamento, negritude e compromisso
A pesquisa de Cardoso apontou o ideal de branqueamento somado a ideologia de compromisso e a ideologia de negritude, como os dois tipos básicos de ajustamento dos negros a nova ordem de classes, do pós-Abolição na qual os ex-escravos, bem como seus primeiros descendentes se enquadraram socialmente. Como já foi mencionado no capítulo anterior, o ideal de branqueamento juntamente a ideologia de compromissos se caracterizava por legitimar o preconceito e por anuir às diferenciações sociais que os brancos buscavam impor aos negros por serem negros. Já no caso da ideologia de negritude, temos como característica principal a tentativa de uma reação crítica dos negros contra as condições sociais a que estavam submetidos.
No entanto, somente estas características são insuficientes para esta monografia, visto que estes rumos constituem o eixo central da pesquisa. Como cumprir a proposta desta monografia sem antes ter um entendimento do que envolve a palavra ideologia? Ou sem compreender o que envolve o termo negritude? Sem a compreensão do significado de compromisso? E quanto ao ideal de branqueamento, como entendê-lo? Cardoso em sua pesquisa deixa algumas diretrizes que auxiliam o entendimento dessas palavras. Contudo, se faz necessário um maior aprofundamento no sentido interpretativo, para que assim se possa ter uma delimitação mais precisa dos termos centrais desta monografia .
Ideologia
A tarefa de tentar explicar ideologia é complexa, pois diversos pesquisadores renomados já o fizeram, cada um à sua maneira, o que refletiu em uma grande quantidade de significados para a ideologia que muitas vezes tiveram sentidos contraditórios, convergentes, paradoxais e ambíguos. Portanto, estamos diante de uma palavra que exige sempre uma delimitação quando utilizada, principalmente em trabalhos acadêmicos.
O termo ideologia empregado por Cardoso possui um viés marxista, visto a própria dialética marxista utilizada como diretriz de sua pesquisa. Mas cabe aqui salientar que já na nota as edições anteriores, ele afirma que não era adepto de:
(...) um marxismo ritual e indolente que escondia em conceitos muitos gerais e filosofantes a pobreza do espírito analítico ou a ignorância dos caminhos sem graça mas necessários a pesquisa (...) não se podia jogar pela janela, simplesmente, um século de trabalhos sociológicos alheios a Marx (...) foi a partir de interpretações não baseadas na economia e na história, mas sim na filosofia, que fomos buscar elementos para uma análise dialética de processos sociais reais (...) Tentei usar a dialética de modo heurístico e não dogmático, e não escrevi como se nunca tivesse lido Weber, Parsons e os demais sociólogos. E tinha bem próximo a mim o modelo e o esforço de Florestan Fernandes que sempre insistiu na relação entre ciência e história, pesquisa e reflexão.

Nota-se então que o autor não restringiu seu trabalho apenas sob a lógica marxista, ele utilizou diversas concepções teóricas em suas pesquisas.
Contudo, quando Cardoso se referiu especificamente a questão da ideologia, fez considerações que necessitam de uma reflexão, pois alegou que:

Os alcances das noções ideológicas e seu sentido real só aparecem quando através da análise, chega-se a determinar os conceitos explicativos. Um conceito só é explicativo quando mostra as tendências de transformação contidas pelas oposições que caracterizam, num dado momento, as situações de dominação existentes. Ao explicitar os choques de interesse, as contradições e as bases sociais para a transformação da sociedade, os conceitos explicativos permitem a articulação das representações correntes (a ideologia) com os interesses e permitem que se explicitem os fundamentos sociais destes.

Mais do que definir ideologia, devemos tentar apresentar um conceito explicativo dessa palavra, pois esta monografia busca compreender o sentido real das noções ideológicas presentes nas representações correntes na sociedade do pós-Abolição. A explicação mais coerente a ser empregada nesta monografia é inerente a teoria marxista, visto a opção metodológica de Cardoso, que como já foi mencionado, não se restringiu apenas a ela, mas a teve como maior diretriz de trabalho.
Ao analisar a questão da ideologia presente no livro Ideologia Alemã de autoria de Marx em parceria com Engels, podemos refletir a cerca do que o próprio Marx entendia como ideologia:

A consciência nunca pode ser mais do que o Ser consciente; e o Ser dos homens é o seu processo da vida real. E se em toda a ideologia os homens e as suas relações nos surgem invertidos, tal como acontece numa câmera obscura isto é apenas o resultado do seu processo de vida histórico, do mesmo modo que a imagem invertida dos objetos que se forma na retina é uma conseqüência do seu processo de vida diretamente físico.

A ideologia aparece como algo ilusório, o “ser” dos homens, assim como suas relações sociais, aparecem como realidade invertida dentro de uma ideologia. Isso significa que “no processo de construção da consciência, há de se considerar o peso da relação de dominação e de processos alienatórios e idelogizantes, em todos os espaços sociais” assim podemos concluir que se a consciência não for mais do que o ser consciente, ela está a mercê das ideologias que representam a deformação da vida real.
Portanto, a ideologia para Marx mascara a realidade e a faz aceitável ao nível da consciência quando o homem não é consciente. Na Ideologia Alemã o autor demonstra ainda que durante o processo histórico, houve uma divisão entre trabalho manual e intelectual. Isso implicou na origem de ideólogos ou intelectuais, que passaram por meio da criação de idéias, geralmente favoráveis as classes dominantes, a deformar a compreensão sobre o modo como se processam as relações de produção.
Marx não se restringiu a escrever sobre ideologia apenas no estudo sobre a ideologia alemã, no entanto, para esta a monografia as considerações feitas nesta pesquisa são capazes de proporcionar subsídios necessários à identificação do conceito explicativo de ideologia que será utilizado daqui por diante.
Após esta breve reflexão, temos como conceito explicativo a ser utilizado nesta monografia, ideologia como a representação corrente de uma idéia oriunda da interpretação da realidade, mas sem esquecer que essa realidade reflete, conforme Marx, uma ilusão implementada pela classe dominante.
Ideal de branqueamento e Ideologia de compromisso
Ao caracterizar os dois tipos básicos de ajustamento do negro no pós-Abolição, Cardoso afirma que um deles podia ser definido como a absorção do ideal de branqueamento e pelo estímulo a ideologia de compromissos. Neste tópico tenho objetivo de esclarecer o significado destes dois itens.
Em primeiro lugar gostaria de me deter no ideal de branqueamento. No artigo intitulado Negros de almas brancas? A ideologia de branqueamento no interior da comunidade negra de São Paulo, 1915-1930 de Domingues, logo no início, o autor aborda a questão conceitual de branqueamento:

O branqueamento ora é visto como interiorização dos modelos culturais brancos pelo segmento negro, implicando a perda do seu ethos de matriz africana, ora é definido pelos autores como processo de ‘clareamento’ da população brasileira, registrado pelos censos oficiais e previsões estatísticas do final do século XIX e inicio do XX.

Embora Domingues trabalhe com “ideologia de branqueamento” ao invés do “ideal de branqueamento” mencionado por Cardoso, temos uma abordagem relativa ao significado de branqueamento que se faz necessária nesta pesquisa. Entendo que a reflexão sobre estas duas abordagens apresentadas pelo autor sejam válidas para caracterizar o ideal de branqueamento, o qual possui grande importância para se compreender posteriormente a ideologia de compromisso.
Esse ideal enquanto interiorização dos modelos culturais do branco pelos afro-descendentes é anterior abolição. Durante o período de escravidão surge no Brasil à figura do mulato, tal fato por vezes gerava discriminação entre os próprios cativos, pois, sendo um escravo claro, ficava evidenciado que era filho de seu patrão, sendo assim, mesmo não sendo regra, o escravo mulato era privilegiado em comparação aos demais.
Esse privilégio por vezes era caracterizado por um tratamento mais brando, e até mesmo pela concessão das sonhadas cartas de alforria. Em um artigo denominado Por amor e por interesse: a relação senhor-escravo em cartas de alforria elaborado por Ligia Bellini, no qual ao escrecer sobre as leituras das cartas, a autora apresenta uma citação muito pertinente para ilustrar a situação dos mulatos no período de escravidão no Brasil.
A leitura das cartas de alforria vem confirmar parte dos dizeres de um ditado popular citado pelo jesuíta Andreoli – ‘o Brasil é um inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos...’ – e sua observação de que ‘não falta entre eles e elas (os senhores e senhoras) quem se deixe governar de mulatos.

Mesmo sendo um tanto exagerado se falar em paraíso, fica demonstrado que a situação do escravo mulato era em muitos casos melhor do que a dos escravos mais escuros. Provavelmente fatos como estes geraram “ciúmes”, ou sentimento por parte dos mulatos de uma certa “superioridade” em relação aos demais escravos, esse conflito obviamente prolongou-se após a abolição, dando espaço a disseminação do ideal de branqueamento entre os cativos.
O branqueamento, marcado pela interiorização do modelo cultural branco pelos negros, pode ser entendida pela absorção de um ideário de inferioridade cultural negra pelos próprios afro-descendentes. Tudo isso implicava na negação das características próprias da etnia (aparência, religião, etc...). Um bom exemplo desta realidade é o famosa expressão popular: Negro de alma Branca.
No entanto, o branqueamento ganhou força com o fim da escravidão, pois se anteriormente era um ideal que se configurava como uma espécie de “válvula de escape” dos escravos, na República Velha passou a ser também uma diretriz política. Essa constatação remete a caracterização de branqueamento enquanto processo de clareamento da população brasileira.
Logo após três anos da abolição da escravidão, foi promulgada a constituição federal no Brasil. O segundo parágrafo do 35º artigo deste conjunto de leis serve para ilustrar de que forma o branqueamento tornou-se diretriz política, ele versa que:
Incumbe, outrossim, ao Congresso, mas não privativamente: animar no Pais o desenvolvimento das letras, artes e ciências, bem como a imigração, a agricultura, a indústria e comércio, sem privilégios que tolham a ação dos governos locais;(...).

O que chama atenção nesta citação é o “bem como a imigração” que é um anseio claro das oligarquias rurais e até dos que vislumbravam uma industrialização, mediante substituição da mão-de-obra escrava e inserção de mão-de-obra especializada oriunda da Europa, excluindo assim os ex-cativos nesse processo que buscava o dito progresso.
A constituição de 1891 possui muitos elementos que respondiam aos anseios das elites de São Paulo e Rio de Janeiro, regiões estas de grande influência na política nacional. No entanto, cabe salientar que a região onde serão analisadas as implicações sociais das ideologias de negritude e compromisso e do ideal de branqueamento, apresentam alguns aspectos próprios que não correspondem exatamente ao que foi abordado por conta da análise feita sobre o artigo da constituição mencionado anteriormente.
Basicamente, o Rio Grande do Sul ingressou na transição capitalista a partir de uma base diferenciada de São Paulo. A indústria, enquanto forma avançada de estruturação do capitalismo, não teve os seus pressupostos básicos desenvolvidos no sul através da atividade agrária não-exportadora que era dominante, mas a partir da comercialização dos produtos da agropecuária colonial de base imigrante.

Embora o Rio Grande do Sul tenha se diferenciado de São Paulo no que tange a transição ao capitalismo, no que diz respeito à situação dos ex-escravos, ambas apresentaram na exclusão social do negro um ponto comum. A imigração no Rio Grande do Sul despontou como uma concepção de branqueamento, na medida em que o poder estatal vislumbrava no imigrante europeu as qualidades necessárias à construção da província, e posteriormente do estado federativo, e, mesmo diante da decadência do regime escravista e da consequente abolição, não investiu no potencial humano que aos poucos conquistava ou recebia a liberdade e que se fosse aproveitado, talvez, poderia ter suprido parte da mão-de-obra necessária a construção desta região. A concepção de branqueamento se dá pela opção estatal , que implicou em investimento no translado e na distribuição de terras aos imigrantes, paralelamente a exploração e a falta de políticas de cunho inclusivas para com escravos, ex-escravos e descendentes.
A diretriz política que procurou instituir o branqueamento enquanto processo de clareamento da população, tem no capítulo intitulado Ideologia de branqueamento das elites brasileiras importantes considerações a cerca do que fundamentava ideologicamente esta política.
Enquanto se formava e desenvolvia na base uma sociedade multirracial, as nossas elites intelectuais se municiavam de armas para provar a necessidade de acabarmos com o ‘mascavo nacional’ e nos transformarmos em uma nação branca. Esta elite, ao mesmo tempo que assimilava esses elementos de alienação, procurava por outro lado estabelecer uma política migratória capaz de branquear a sociedade brasileira.

Essas armas que auxiliariam na construção de uma nação branca, foram os fundamentos ideológicos presentes nas teorias racistas que se proliferaram no final do século XIX e nas primeiras décadas do século seguinte. Após analisar diversos autores do período, Moura conclui que “(...) nos escritores que vão até 1920 o diapasão é o mesmo: a necessidade da extinção das ‘raças fracas’ e a emergência de uma nação formada exclusiva ou predominantemente de brancos” o que representa o discurso que legitimava a política de branqueamento praticada pelo Estado.
Após essas considerações podemos sintetizar o significado de ideal de branqueamento como sendo uma meta a ser alcançada, tanto pelo próprio negro quanto pela política estatal, sendo que a meta correspondia respectivamente à incorporação dos valores culturais do branco e pelo incentivo ao clareamento da população nacional. Contudo, se um dos rumos propostos por Cardoso podia ser definido pela a absorção desse ideal, juntamente com o estímulo a ideologia de compromissos, nos resta agora buscar o significado dessa ideologia para que assim possamos compreender o que envolve a proposta dessa forma de ajustamento.
Entretanto, se o ideal de branqueamento possui no clareamento uma política estatal, seria ele uma forma de ajustamento do negro a sociedade de classe? Entendo que sim, na medida em que influencia diretamente a ideologia de compromisso, ou seja, as justificativas do clareamento também legitimavam a manutenção da submissão do negro.
No modelo explicativo de Marx, temos ideologia como uma ideia, oriunda da interpretação da realidade, correspondente a uma ilusão construída pela classe dominante. Contudo, se a absorção do ideal de branqueamento somado ao estímulo a ideologia de compromissos, tinha por função legitimar preconceitos e diferenciações sociais após a abolição, podemos compreender que este estímulo foi à tentativa de criar uma ilusão capaz de manter o negro na classe explorada através da criação de um vínculo de compromisso materializado na política estatal.
O compromisso se deu pelo estímulo a dependência do negro em relação ao branco. Essa dependência foi estimulada através de aspectos (intelectuais, morais, religiosos, profissionais, etc...) que legaram ao negro uma posição na hierarquia social de subalternidade, isto é, foi um estímulo no sentido de naturalizar a posição de inferioridade em relação ao branco, que tinha assim sua posição legitimada na parte superior da hierarquia social.
Ideologia de Negritude
A ideologia de negritude segundo Cardoso se caracterizou por uma reação crítica contra a opressão social imposta aos negros. Entretanto, tomamos como diretriz para a compreensão da palavra ideologia nesta pesquisa o modelo explicativo de Marx, ou seja, ideologia como uma ideia, oriunda da interpretação da realidade, correspondente a uma ilusão construída pelas classes dominantes.
Diante disso temos uma contradição: Como uma classe dominada poderia construir uma ideologia, visto que para Marx ela advinha da classe dominante? Segundo este modelo explicativo, a classe dominada, a dos negros, não seria capaz de criar uma ideologia. Sendo assim, temos duas hipóteses: ou Cardoso utilizou um referencial diferente do aqui utilizado para compreender ideologia, ou então ele foi incoerente em suas palavras.
Entendo que a ideologia de negritude mencionada por Cardoso era mais um “ideal” do que uma “ideologia”. A reação crítica contra a opressão foi materializada através de diversas ações que visavam incluir socialmente o negro, lutando contra as idéias racistas, procurando elevar sua auto-estima, entre outras coisas que podem ser entendidas como uma meta a ser atingida, ou seja, um ideal.
Em pesquisa referente aos clubes carnavalescos negros da cidade de Pelotas, encontramos uma importante constatação que reforça a concepção sobre o ideal de negritude:

Ao considerar as diversas organizações dos negros, de cunho social, beneficente, e de cunho político no período colonial e imperial, foi possível perceber que muitas dessas deram origem às organizações que congregaram negros no pós-abolição.


Tal afirmação nos remete ao fato de que as organizações do período colonial e imperial consistiam basicamente nas irmandades religiosas e nos clubes abolicionistas. Essas organizações tinham entre outros aspectos a busca pela inclusão social do negro, um bom exemplo disso foram às compras das cartas de alforria efetuadas por aquelas entidades. Então, como deram origem às organizações que congregaram o negro do pós-Abolição, possivelmente suas ações mantiveram muito do que se praticava anteriormente, sendo assim, podemos afirmar que os ideais continuaram praticamente os mesmos.
A partir das considerações feitas até aqui, podemos delimitar os conceitos explicativos das formas de ajustamento a sociedade de classes seguidos pelos negros no pós-Abolição sugeridos por Cardoso.
A primeira forma de ajustamento versa sobre a absorção do ideal de branqueamento que pode ser explicado como uma meta a ser alcançada, tanto pelo próprio negro quanto pela política estatal, sendo que a meta correspondia respectivamente a incorporação dos valores culturais do branco e pelo incentivo ao clareamento da população nacional. Somados a este aspecto, temos no estímulo a ideologia de compromisso o complemento deste caminho pós-Abolição, visto ter sido ele o responsável pela criação de uma ilusão, que naturalizou a relação de dependência do negro mediante sua suposta inferioridade em relação ao branco.
No que tange a outra forma de ajustamento, temos a substituição do termo ideologia de negritude por ideal de negritude, cujo conceito explicativo consiste na meta que alguns negros compartilhavam, no intuito de incluir socialmente o negro, lutando contra as ideias racistas, procurando elevar sua auto-estima, entre outras coisas que podem ser entendidas como um ideal.

CAPITULO III

Das formas de ajustamento do negro nas Vozes do Silêncio

O ideal de branqueamento e a ideologia de compromisso nas Vozes do Silêncio

As caracterizações do ideal de branqueamento e da ideologia de compromisso presentes nas Vozes do Silêncio proporcionam importantes informações que auxiliam na análise das implicações sociais, deste que foi uma das duas formas básicas de ajustamento do negro a nova ordem de classes pós-abolição.
A ideia de que tanto o negro, quanto a política estatal, possuíam por meta o ideal de branqueamento, respectivamente na forma da incorporação dos valores culturais do branco e pelo incentivo ao clareamento da população nacional. Pode ser observada em diversos depoimentos .
A entrevista realizada com o sr. Paulino Soares Nunes, que nasceu no ano de 1926, final da República Velha, na cidade de Arroio do Padre, na época um distrito de Pelotas, expõe um pouco do ideal de branqueamento mencionado por Cardoso.

ENTREVISTADOR – Seu Paulino, depois da escravidão o negro foi deixado de lado, sem trabalho, sem terra... E continua naquele preconceito de cor. Que provérbios vocês conhecem que discriminam o negro?
PAULINO – Óia, aqui eu não lembro!
ENTREVISTADOR – Tipo assim: “ – Isso é serviço de negro”.
PAULINO – Bom, tem muitos assim. Assim: “Negro que não faz na entrada, faz na saída”. Isso também. Agora eu sou contra isso, eu sou preto, mas...
ENTREVISTADOR – Claro?
PAULINO – Mas a palavra moreno é moreno. Porquê preto é uma palavra que não existe! [...]Agora eu não gosto que me chamem de negro. Ah, não. Pode ser lá quem for. Me chamou de negro eu já “paro os pé” com ele.

O ideal de branqueamento, enquanto incorporação dos valores culturais do branco, pode ser notado na aversão do sr. Paulino a sua cor, visto que prefere ser chamado de moreno ao invés de negro. Nesse contexto, notamos que ser considerado moreno era para ele um tratamento mais digno, enquanto que a palavra negro apresenta-se como um pejorativo. Foi mencionado ainda neste trecho os provérbios racistas que nos remetem a ideologia de compromisso, na medida em que criava a ilusão por exemplo que todo o serviço mal feito é de negro, ou quando não faz na entrada faz na saída, entre outras tantas expressões que ainda hoje persistem no cotidiano brasileiro.
O ideal de branqueamento pelo clareamento da população nota-se pelas referências feitas sobre os imigrantes nos depoimentos. Ainda na entrevista do sr. Paulino, podemos refletir sobre as implicações sociais deste processo.

ENTREVISTADOR – O senhor já teve alguma experiência de ter sido deixado de lado por causa da sua cor?
PAULINO – Não
ENTREVISTADOR – Alguma loja, cinema, igreja?
PAULINO – Não, isso não! Mas eu já não entrava, né. As vezes num lugar que o cara já sabe que não apreciam o cara como os outros, o cara já não entra. Eu mesmo não entrava.
ENTREVISTADOR – E lá nas vendas dos alemães lá fora?
PAULINO – Não, lá não entrava. Tinha certas vendas que eu não entrava, porque já ficavam olhando o cara assim por cima. Baile mesmo, naquele tempo, se era negro era só negro. Nem mulato entrava.
ENTREVISTADOR – Nem mulato?
PAULINO – Não era só negro, era negro. Se era branco era branco.

O clareamento na região meridional do Rio Grande do Sul aconteceu com a vinda de imigrantes de diversas regiões da Europa. Os alemães foram, dentre as diversas nacionalidades que na região desembarcaram, uma das presenças mais expressivas, seja pelo número de pessoas que proporcionou, ou pela contribuição que trouxe no desenvolvimento econômico da região.
No que tange o ideal de branqueamento, enquanto clareamento da população, podemos observar na segregação por conta da cor da pele uma ideia de hierarquia social. O sr. Paulino afirmou que não entrava na venda para não ser visto de cima para baixo, mas, por qual motivo o proprietário do local agiria daquela forma? Acredito que fosse para evidenciar que naquele local o negro não era bem-vindo, ou seja, ali não era seu lugar. Existia uma aversão, que não pode ser somente atribuída à cor da pele porque não faria sentido deixar de ter lucro, atrás daquele ato havia algo que embasava ideologicamente tal procedimento. Provavelmente o proprietário enxergasse o negro pela óptica do preconceito ou via no negro um ser inferior. O ser olhado de cima para baixo era mais uma maneira de tentar inferiorizar o negro, se ele absorvia esta tentativa, facilitava a sua submissão dentro da hierarquia social.
O estímulo à ideologia de compromisso possui um modelo explicativo que afirma ser ela a responsável pela criação de uma ilusão, que naturalizou a relação de dependência do negro mediante sua suposta inferioridade em relação ao branco. Diante disso, temos outro depoimento que converge para esta forma de ajustamento do negro a sociedade de classes.
Uma das entrevistas que considerei mais ricas em detalhes do livro de Vecchia foi a da sra. Luiza Dornelles, nascida no ano de 1885 na cidade de Caçapava do Sul. Ela “criou-se” na roça, meio rural, mas sua descrição de procissão pode ser estendida ao meio urbano, já que lá possivelmente se realizava sob a mesma lógica.

ENTREVISTADOR - Os pretos tinham que ficar pra trás nas procissões?
LUIZA – Atrás do andor, atrás da música.
ENTREVISTADOR – E, ... na igreja os pretos, também tinham que ficar pra trás?
LUIZA – Também tinha que ficá pra tráis! Não....
ENTREVISTADOR- Mesmo depois da escravidão, vó?
LUIZA – Isso tudo depois da escravidão.

Dona Luiza posteriormente afirma quando questionada sobre qual era a religião praticada pelos negros, responde que a grande maioria era católica. Então, é importante salientar que o valor simbólico da procissão é emblemático, pois para manter o negro atrás de tudo e de todos, nada melhor do que se utilizar a Igreja Católica, algo que já não era novidade, para legitimar a dominação e a naturalização do preconceito.
Ao analisar o capital simbólico e a dominação nas irmandades religiosas da cidade de Sobral, no estado do Ceará, durante o século XX, Costa fez uma referência sobre a Igreja Católica que pode ser utilizada ao analisarmos o posicionamento do negro dentro de uma procissão.

A instituição religiosa exerceu – e ainda exerce, em menor escala – papel de fundamental importância na reprodução social, na medida em que operava como matriz de valores e estrutura de classificação, legitimando a hierarquização social prevalente, qualificando as elites com suas escolas e outras instâncias de formação e bendizendo a dominação política do mandonismo local.

Essa reprodução social legitimava o lugar do negro dentro da hierarquia social, ou seja, qualificava as elites brancas na medida em que reforçava a suposta inferioridade do negro em relação ao branco. Esta citação reflete uma forma de comportamento dominante entre a chamada aristocracia rural do nordeste, mas pode ser estendida a região meridional do Rio Grande do Sul, pois em ambas localidades a religião católica e seu “aparelho” aparecem como elementos fundamentais de socialização, distinção, reprodução e legitimação das elites.
Outro aspecto que chama atenção na leitura dos depoimentos são as referências aos “filhos de criação”. Não foi à toa que Vecchia elaborou sua Tese de Doutorado analisando a situação de semi-servidão aos quais muitos destes estavam submetidos. De fato, em todas entrevistas se faz referência ao “filho de criação”, quando não eram os próprios entrevistados, eram seus pais, seus avós, seu cônjuges, seus parentes e amigos que possuíram essa espécie de vínculo.
Tal vínculo é apontado por alguns entrevistados como algo bom, ou seja, afirmavam que havia um bom tratamento por parte dos pais de criação. Entretanto, outros contaram versões que destoavam deste discurso, apontando exatamente o sentido inverso. No entanto, a respeito do trabalho, todos foram unânimes ao afirmarem ser mão-de-obra sujeita sempre a um árduo trabalho, tanto os que viveram no meio rural, quanto os que estavam nas cidades.
A entrevista da sr. Celina Soares, nascida no ano de 1909 no Rincão dos Cravos, zona rural de Pelotas, apresenta um depoimento sobre o tratamento que recebeu enquanto “filha de criação”, ela apresenta um elemento que nos auxilia a compreender uma das formas de ajustamento do negro a sociedade de classes.

ENTREVISTADOR – E como que essas pessoas se relacionavam com a senhora?
CELINA – Ah, não eram bons pra mim! Não eram bons pra mim! Era uma vida de escravo! E não era mais tempo de escravidez. Já tinha passado a escravidão, não é. Mas eu fui criada bem como escrava. Não podia sair, não podia ganhar uma roupinha, não podia ganha um calçado pra botá no pé. Então eu fazia o que podia, né? Trabalhava de dia e de noite e ia pros galpão apará palha pra vende aquela palha pra comprá um calçadinho pra botá nos pé, umas tamanquinha, um chinelinho. E ainda assim a minha “mãe de criação” não queria me vê com aquilo nos pé. Eu acho que aí já é uma escravidão, não é.

O elemento que fiz referência anteriormente, corresponde ao que a sra. Celina mencionou a respeito do sapato. Andar descalço no período de escravidão para o negro representava que ele não era livre, o negro que andava calçado era o que já havia conquistado a liberdade, ao que parece a “mãe de criação” impunha sobre sua filha uma inferiorização idêntica ao que era imposta ao negro escravizado ao fazer com que ela andasse descalça. O ajustamento social de Celina se dá no âmbito da ideologia de compromisso, que pela noção de inferioridade a que era submetida, acreditava ser uma escrava mesmo após a liberdade.
No caso do sr. Ângelo Peres, nascido aproximadamente no ano de 1910, viveu também como filho de criação na zona rural de Piratini, temos outro elemento que nos remete a período de escravidão.
ENTREVISTADOR – [...] e o senhor era considerado o que lá, filho de criação?
ÂNGELO- [...] Filho de criação, isso mesmo.”
(...)
ENTREVISTADOR – Escuta, alguém de vocês lá, dos pião, foi maltratado, alguma vez, alguém bateu?
ÂNGELO – Apanhei.
ENTREVISTADOR – Com o que que eles batiam em vocês lá?
ÂNGELO – Com relio.

Provavelmente este fato tenha ocorrido ao fim da década de 20, visto que ele afirma ter saído da fazenda com vinte anos de idade, mas essa informação é necessária para que possamos mensurar que cerca de trinta anos após abolição ainda utilizava-se este tipo de coerção, que tem em si um sentido humilhante e que possui o mesmo intuito do “andar descalço” imposto a sra. Celina.
O filho de criação foi uma expressão que não deve ser confundida com a idéia de filho adotivo atual. De acordo com as entrevistas, observou-se que existiam claras diferenciações entre os filhos legítimos e de criação dos fazendeiros ou patrões. Geralmente os filhos legítimos tinham acesso à educação enquanto os de criação trabalhavam.
O ajustamento do negro a sociedade de classes, no âmbito da ideologia de compromisso, têm na exclusão educacional um importante fator de submissão dentro do período da República Velha. Dos entrevistados que tiveram a oportunidade de estudar, poucos o fizeram antes de 1930, o que logo repercutiu em ocupações profissionais de subemprego, de semi-servidão, de marginalidade, que de uma forma o de outra, legou ao negro uma idéia de inferioridade.


O ideal de negritude nas Vozes do Silêncio
Na República Velha o ideal de negritude caracterizou-se como uma forma de dar voz aos anseios de inclusão social dos negros. O ajustamento do negro a sociedade de classes no pós-Abolição por esse viés, caracterizou-se pela agregação e da participação negra, ao contrário dos movimentos abolicionistas articulados muitas vezes sem a participação daqueles que, em tese, seriam os mais interessados na abolição!
Entre as forças que procuravam disseminar o ideal de negritude, consta uma preocupação maior com a cultura e educação do grupo negro, nesse intuito é que foi fundado na cidade de Pelotas em 1907 o Jornal A Alvorada, que teve uma longa atuação entre a comunidade negra e operária da cidade, existindo até meados da década de 1960, com pequenos intervalos de interrupção. O depoimento a seguir é do sr. José Mira, nascido por volta de 1920 em Pelotas, e remete a intencionalidade do jornal.

ENTREVISTADOR- O senhor era tipógrafo ou participava também escrevendo alguma coisa?
JOSÉ MIRA - Eu,... bom, eu escrevia num outro jornalzinho pequeno, jornal de bolso, chamado “Alvorada”, jornalzinho de raça, mesmo. Esse jornal era... eu trabalhei nesse jornal muito tempo.
ENTREVISTADOR – E o que que nesse jornal vocês publicavam? Assim...
JOSÉ MIRA – Artigos contra... eh,..eh... assuntos de cor. Era... eu... os redatores era... eh... Xavier... Rodolfo Xavier! E Armando Vargas! Aqueles eram pessoas ilustres sobre raça e sobre o assunto. [...] Eram homens que lutavam através da pena sobre o problema do “nego”.
ENTREVISTADOR – Da discriminação –do negro em Pelotas?
JOSÈ MIRA – Na discriminação, sim! [...]

A fala do Sr. José Mira caracteriza o ideal de negritude, pois através da pena se discutia o problema do negro, isto é, se contestava as relações raciais que eram desfavoráveis ao seu público. Em pesquisa sobre o Jornal A Alvorada, Santos traz algumas considerações relevantes.

O jornal, desde o início, assumiu as funções de um “partido”, pois tinha um “programa” definido a ser seguido, o que aglutinou muitas pessoas ao seu redor. Esta característica nos permitiu perceber que o jornal A Alvorada, pela sua longevidade e penetração na comunidade negra pelotense (tendo-se isto como uma hipótese), podia ser reconhecido como a maior expressão da organização dos negros na defesa dos seus interesses. .

A comparação do jornal com o partido indica a presença do ideal de negritude na forma de programa partidário. Sendo assim, Santos ainda afirma que o periódico podia ser reconhecido como a maior expressão de organização dos negros para a defesa de seus interesses, ou seja, podemos dizer que o jornal tinha como meta combater o ideal de branqueamento e a ideologia de compromisso.
Além deste jornal, em que o sr. José Mira praticamente materializa o ideal de negritude, encontramos nas Vozes do Silêncio outros aspectos em que essa forma de ajustamento a sociedade de classe se fez presente.
Os cordões carnavalescos, bem como os clubes sociais fundados pelos negros durante a República Velha, que se proliferaram nas décadas seguintes, constituíam uma rede associativa formada pela etnia, que auxiliou na integração de seus membros a sociedade, em termos de construção de relacionamentos, amizades, relações de compadrio e, obviamente, de oportunidades de emprego e casamento. A entrevista do Sr. José Mira fornece algumas considerações.

ENTREVISTADOR – Senhor José Mira, a respeito das instituições, clubes e outras organizações que os negros conseguiram articular, eh... Nesse sentido deles fazerem a sua vida social, se divertiram, como é que era essa questão, em termos sociais, depois da escravidão aqui em Pelotas?
JOSÉ MIRA – Houve entidades da nossa com que... Existiram, né? Floresta Aurora(?), e... Democratas, ... Democratas ainda cheguei a alcançar, mas aqueles democratas eles não... eram... eram... numa espécie, numa palavra, era mulatos! Posso falar claramente, eram mulatos que não parti pão... que não queriam pessoas muito pretas! Lamentavelmente! (...)
ENTREVISTADOR – Tinha que ser meio mulato, então, pra poder participar por lá?
JOSÉ MIRA – Isso existiu, e inda tem um pouco, né? Inda tem, tem, mas é que na época até, as pessoas começaram a lutar e o valor do estudo, a desenvoltura... ah... vai fazendo com que a gente –“cumé”? – passe por cima dessas coisas né!.

A importância desses clubes na organização político-social dos negros da região meridional do Rio Grande do Sul foi relevante, pois como congregavam pessoas que compartilhavam problemas sociais semelhantes, é de se supor que naqueles locais, mesmo que não oficialmente , tais problemas fossem discutidos por seus sócios ou integrantes. O Sr. José Mira afirmou que algumas pessoas começaram a lutar, valorizaram o estudo, o que por sua vez resultou em passar por cima da discriminação entre negros e mulatos, oriunda do ideal de branqueamento, conforme analisado no segundo capítulo desta monografia.
A organização político-social também diz respeito aos relacionamentos que os clubes mantinham entre si. Na cidade do Rio Grande temos um exemplo:

Uma outra prática que se instaurou na entidade, desde seus primórdios, foi a aproximação com outras sociedades de natureza semelhante. Em setembro de 1925, por exemplo representantes do Estrela do Oriente participaram da inauguração da biblioteca do Rancho Carnavalesco Braço é Braço. No ano seguinte, o Cordão voltava a participar de atividades promovidas por aquela co-irmã, enviando representantes ao evento que se desenvolveu nas dependências do Teatro Polyteama .

Neste trecho podemos observar que a cerimônia de inauguração da biblioteca, demonstra a preocupação com a cultura e educação do grupo negro que compunha o quadro social do Rancho Carnavalesco Braço é Braço. O Cordão Carnavalesco Estrela do Oriente, que no ano de 1962 tornou-se Clube Estrela do Oriente, só conseguiu inaugurar sua biblioteca no dia 13 de maio de 1965, provavelmente está data, que marca o dia da abolição da escravidão no país, não tenha sido escolhida por acaso, pois facilmente podemos relacionar liberdade à questão da educação, da cultura, como forma de combate a alienação, que como já observamos, vinha acontecendo desde setembro de 1925, República Velha, na sua co-irmã rio-grandina.
As Vozes do Silêncio apresentam em algumas entrevistas referências a um acontecimento, que acredito deva estar documentado nos jornais de Pelotas, mas dos quais infelizmente não foi possível consultar, de uma reação violenta contra a segregação racial imposta aos negros. Uma das entrevistas que aborda esse episódio foi concedida pela sra. Maria Filomena Nunes Garcia, nascida no ano de 1912 em Piratini que na infância mudou-se para Pelotas.

ENTREVISTADOR – E no quartel também apanhavam os soldados?
FILOMENA – É, também!
ENTREVISTADOR – E, como é que eles batiam?
FILOMENA – O home que tiro a vara da escravidão do quartel era, parece que um tal de João Cândido. Um tal de Cândido, um que tirou uma águia de cima do palácio de um governador, parece que foi... de uma mira que ele féis! Tiro a águia de cima do palácio. Ah, ah... (risadas)... do governo do Brasil. Foi um desses que levanto a vara do quartel. (...)
ENTREVISTADOR – E aqui, a cidade de Pelotas como era no seu tempo, em que a senhora era moça?
FILOMENA – Como tava le contando: quando era menina aqui, a cidade aí, na praça Cel. Pedro Osório ainda tinha assim cheia de rosa e não entrava... sentava era os rico, era toda gradiada de arame e espinho na vorta, prá não entrá gente de cor lá dentro. Mas, meu pai entro! Quem acabo com esse troço foram os marinheiro. Com os marinheiro ninguém pode.
ENTREVISTADOR – O que houve?
FILOMENA – Mas, foro fazê... “Não, não pode entrá...” Mas, cortaro... não sei o que falaro, mas cortaro!! Limparo aquele arame da vorta. “Isso é liberto, isso é uma praça! Não se deve dizê que não é prá sentá! Como é que não se pode sentá?” Com marinheiro não tem conversa! (risada). Acabaro com a cerca da volta da praça! Aí num instante acabo, que vovô-vovó... sentaro nas mesinha... Mas, quando morre vira uma carniça iguar aos outros, ué! Bobage!

A reação contra a segregação racial na praça Cel. Pedro Osório remete à Revolta da Chibata ocorrida no Rio de Janeiro em 1910. O motim liderado pelo marinheiro João Cândido no encouraçado (navio) Minas Gerais, se deu pela revolta contra as 250 chibatadas recebidas pelo marinheiro Marcelino Rodrigues. O fato era que centenas de marujos, de expressiva maioria negra, continuavam tendo seus corpos retalhados, como nos tempos da escravidão, pelos oficiais.
O ato de não aceitar a submissão imposta por meio da coerção física durante a Revolta da Chibata e, a reação contra a segregação racial que ocorria na praça pelotense, por parte dos marinheiros representou uma afronta a ideologia de compromisso, que buscava fazer do negro um submisso. A afirmação de que com marinheiro não tem conversa, talvez esteja atrelada a óptica que a sra. Filomena teve desses dois episódios. Em nenhuma das entrevistas que abordam tal acontecimento foi mencionada a data, no entanto, a entrevistada afirma que era menina na ocasião, por isso presumo que tenha ocorrido antes de 1930.
O ideal de negritude nas Vozes do Silêncio se constitui em uma exceção, ou seja, a maioria das entrevistas remetem ao ideal de branqueamento e a ideologia de compromisso. A maior parte dos entrevistados continuava analfabeta e vivendo em condições precárias no final do século XX, mostrando assim que os efeitos dessas formas de ajustamento durante a República Velha foram determinantes sobre a vida da população negra. No entanto, o ideal de negritude parece ganhar força posteriormente a esse período, devido à proliferação dos clubes negros, a inserção política, entre outros aspectos que conseguiram alguns avanços nas complexas “relações raciais” brasileiras.

Conclusão

Ao longo da presente monografia procurei de forma mais sistemática, exercitar uma vivência com a pesquisa. Segui um longo caminho, a fim de analisar as Vozes do Silêncio dentro do contexto da produção historiográfica a cerca do problema racial no período da República Velha. O trabalho de graduação serviu assim, de fato, como um momento de vivenciar os diferentes aspectos que envolvem o processo de pesquisa.
Sobre o presente objeto de estudo, entendo que esbocei alguns contornos, a partir dos quais poderão se desdobrar novas investigações. A trajetória da pesquisa impôs mais momentos de dúvidas do que de certezas, entretanto, desenvolveu-se sempre no intuito de tentar analisar de forma critica as implicações sociais do ideal de branqueamento juntamente as ideologias de compromisso e negritude, no contexto social e político da República Velha, na região meridional do Rio Grande do Sul, para quem sabe contribuir historiograficamente na construção da justiça social.
Para tal, procurei apresentar parte do debate à cerca da questão racial no imaginário social brasileiro que antecedeu, transpassou e sucedeu o período da República Velha. Também busquei uma delimitação mais precisa do significado dos termos centrais desta monografia (branqueamento, compromisso, negritude, ideologia e ideal). E, posteriormente, procurei identificar de que forma os ideais de branqueamento e negritude e a ideologia de compromisso se fizeram presentes nas Vozes do Silêncio.
Sendo assim, acredito ter adquirido subsídios que embasam a análise histórica que auxiliam na compreensão da forma como os ex-escravos e seus primeiros descendentes vivenciaram o contexto da República Velha. A análise dos depoimentos, associada ao conhecimento acumulado através da discussão das fontes historiográficas, referentes ao processo de inserção social dos últimos libertos e seus descendentes a sociedade de classes, forneceu importantes considerações que levam a reflexão sobre o processo.
De forma geral, as implicações sociais das duas formas de ajustamento do negro a sociedade de classes apareceram com diferentes significados nestes depoimentos. Significados que por vezes estavam referidos à abordagem do entrevistador, à história de vida do entrevistado ou ao contexto específico de cada entrevista. Para responder às perguntas, por vezes os entrevistados recorreram a contos populares, ou o que aprenderam na escola, na igreja, nos clubes, nos sindicatos, isto sem falar nas novelas, filmes, entre outras tantas fontes que os depoentes tiveram acesso ao longo de suas vidas.
No entanto, os aspectos inerentes às formas de ajustamento social apresentaram muitas similaridades, que permitiram identificar alguns padrões de referência, que por sua vez transmitiram uma dimensão da conjuntura social que se fez presente durante o período da República Velha na região meridional do Rio Grande do Sul.
A adaptação aos moldes da sociedade capitalista e de classes implicou diretamente para os negros um baixo nível econômico, caracterizado pelas relações de dependência. O ideal de branqueamento e a ideologia de compromisso serviram, como podemos observar nas entrevistas, de mecanismos que mantiveram o negro numa condição muito semelhante à vivenciada no período da escravidão. A dependência implicou na maioria dos casos analisados na falta de liberdade, física e mental, que de uma forma ou de outra correspondiam ao ser escravo.
O ser escravo implica entre outras coisas em considerar o trabalhador escravizado como uma mercadoria ou um bem. Podemos afirmar assim que o escravo podia ser vendido, trocado, comprado, alugado e deixado como herança. Durante a República Velha, as Vozes do Silêncio demonstram que juridicamente tais atos eram proibidos, mas na prática a força das relações de dependência continuaram a fazer do negro uma mercadoria ou um bem, só que descartável.
A adaptação aos moldes da sociedade capitalista e de classes, mediante as relações de dependência, não foram uma solução que o negro pode aceitar como um mandamento inelutável, o ideal de negritude como forma de contestação, conforme o observado nas entrevistas confirmou isso. A luta contra opressão iniciada no tempo do cativeiro, manteve-se ativa durante a República Velha sob a mesma bandeira, a liberdade, que foi a meta dos que se organizaram para comprar cartas de alforria e fundar quilombos. Nas Vozes do Silêncio o ideal de negritude, que se fez presente nas fundações de clubes e jornais, nos aspectos religiosos e na busca pela educação, trouxe implícito em suas ações à busca pela liberdade, ou seja, o ideal de negritude agia no sentido inverso ao ideal de branqueamento e a ideologia de compromisso, que primavam em legar um sentido de dependência na vida do negro que inviabilizava a liberdade.

As observações acima apresentadas são, contudo, apenas indícios de que o problema do preconceito racial e da condição social do negro na sociedade de classes a qual foram inseridos com o fim da escravidão, se constituiu em tema sempre presente nas Vozes do Silêncio. Entretanto, apreender o tema de forma mais ampliada, necessitaria, sem dúvida em um cruzamento maior de fontes e a ampliação no número de entrevistas, mais voltadas para o período da República Velha, visto que as entrevistas de Vecchia estavam direcionadas para captar informações do período de escravidão.
Com estas breves reflexões, não estamos concluindo a pesquisa, pois a partir dessas constatações se abre um leque de novas possibilidades, de outras inquietações relativas ao tema e nas distintas direções que ele aponta. Mas esta é outra história.


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sábado, 6 de junho de 2009

Griots, bibliotecas vivas

Havia uma figura de destaque na corte africana do Mali, era o griot. Este deveria preservar e transmitir histórias, lendas e canções. Os griots eram capazes de contar com detalhes histórias que ouviram quando crianças. Havia também os que guardavam feitos de grandes guerreiros e batalhas emocionantes.

Os griots se tornavam professores dos filhos dos reis. Ensinavam as artes, o conhecimento das plantas, tradições e davam conselhos aos jovens príncipes. Umas das frases mais divulgadas pelos griots professores era: “Cada dia se aprende algo novo, basta saber ouvir”.


Adaptado de África Negra: O Império do Mali e o Reino do Kongo - Prof. Alfredo Boulos Júnior - USP